E quem disse que a utopia acabou? Se é ela, a responsável por configurar e ornamentar os palanques da hipocrisia?
Pensando bem, amigo leitor. Como vai nossa democracia?
– Utopia?
– Hipocrisia?
Talvez se tornaram aliadas para sustentarem o convincente argumento de certos governantes, que por alguns instantes ( período de campanha ) são os mocinhos e heróis- símbolos do Projeto de Salvação da Pátria, que aliás, tem nos sido muito ingrata!
Não, amigo leitor. Isso não é um jogo de rimas, mas sim, verdadeira indignação.
Sabe um desses dias, em que o tempo não está quente, nem frio? – Morno! Como a prática da solução para as necessidades de cidadãos como nós?
Deu pra imaginar?
Pois é! Foi em dia desses, recente, porém constante, que a palavra Democrático despertou em mim, uma curiosidade conflitante…
Parei no sinal.
Horário de pico. Muitos trabalhadores retornavam às suas casas, para o tão almejado descanso. E eu, compunha aquele cenário de mãos, braços e mentes que constroem e nem sempre usufruem da construção.
Enquanto esperava , vi aquelas mãozinhas frágeis de uns doze anos de vida, pés descalços, rostinho fino, olhos fundos de quem não sabia muito o que tinha nas mãos, mas carregava a certeza de que era seu ganha-pão, ou quem sabe, os possíveis trocados que ajudariam a família a comprar o pão.
De certo, aquelas mãozinhas deveriam empunhar o lápis e a caneta, assim como aqueles olhinhos estarem voltados para os livros e outros encantos que o ambiente escolar tem a obrigação de proporcionar às nossas crianças e aos nossos adolescentes.
Curioso! O fato era curioso e tornava-se, a cada instante, mais curioso. Como os olhos curiosos e atentos à parada dos carros para não perder uma janela aberta( como se o tivessem treinado para tamanha agilidade nas pernas e mãos) para a empreitada de distribuir aqueles papéis a todos.
A rapidez do sinal cronometrava-lhe a quantidade de papéis a serem por ele entregues.
E, eu, ali!
Antes que chegasse até mim, eu já pensava no meu filho, nos filhos dos que também paravam naquele lugar e em tudo o que era privado àquele garoto, pela necessidade de cumprir aquela obrigação a ele incumbida.
Curioso!
Ele se aproximou do carro e entregou-me um jornal, como se o alívio se aproximasse dele, pois pareceu-me ter a expressão de quem estava prestes a acabar o dia de trabalho.
Não houve tempo para questioná-lo sobre o produto que distribuía…
Mais intrigante era a pergunta que ainda não se calou em meu pensamento, diante daquela cena:
– Será que o garoto sabia o significado daquilo que me entregara?
– Curioso! Isso sim, amigo leitor, é muito curioso: um jornal denominado “O
Democrático”- deveras, não fosse tão triste a realidade, seria cômica a cena.
O Democrático! Um jornal que, já à primeira vista, denomina a utopia ou a hipocrisia, talvez ambas, com as quais nomes se fazem, personalidades se impõem e, infelizmente, ainda endossa a filosofia enganosa dos agentes democráticos que ilustravam as páginas coloridas que se distanciavam da realidade em preto e branco daquele nosso personagem-mirim que as entregava com admirável avidez.
Colocado no banco do carona, o meu agora novo passageiro- O Democrático_ aguçava a minha curiosidade, pois sempre ouvi dizer no sonho da Democracia.
Assim, durante todo o percurso, por seguidas vezes, olhei para ele na tentativa de absorver-lhe alguma alegria, ainda que fosse somente esperança vã.
Ao chegar à garagem de minha casa, não me contive. Peguei o Democrático na expectativa de encontrar a prática daquela tão sonhada, também por mim, amigo leitor: a democracia.
Curioso!!!
Agora, muito curioso era o que os meus olhos liam e com o que minha consciência, mesmo cansada do trabalho, se constrangia.
Mas vocês sabem… As palavras… É impressionante como elas podem ser facilmente manipuladas e muito mais, manipular.
Talvez, outros, que agora, se detivessem também diante do Democrático, já nem se lembrassem do exemplo de cidadania e democracia visto na figura do ” menino do sinal”.Também, aquele era só mais um menino sem nome, cujo rosto não era muito marcante mesmo.
Ainda dentro do carro, no jornal em minhas mãos, estavam as palavras-chaves, as palvras-mestras ou até mágicas em ano de eleição, intrigavam-me:
“Um novo tempo, a mesma dedicação.”
“… o partido que mais trabalhou pela cidade.”
“Programa…”
“Construção…”
“Ações sociais…”
“Projeto…”
“Trabalho e fé para mudar.”
Dentre outras, essas são algumas das posições das palavras que formavam, naquele papel, expressões intencionais, forjadas em informação.
Não soube, naquele instante como definir a palavra Fé, ali tão bem empregada. E como não tenho muita clareza , interroguei-me, na busca de uma resposta:
– Fé?
– Boa fé?
– Aproveitar da boa fé de alguém?
– Permitir-se acreditar em quê?
– Tomar posse de uma crença que assim como eu, todo o povo, carrega?
Na verdade, não soube até então, com que fé a palavra foi articulada pelo Democrático.
Mas, de repente, algo me animou. Um fio de esperança ressurgia através de uma nova chamada, que foi capaz de causar-me certa alegria. E mais…impulsivamente, eu refazia meus sonhos democráticos na leitura do título de um projeto de nível federal:
“Projeto Olho Vivo.”
Imaginei: – olho vivo? ôpa!
Gosto de gente de olho vivo, porque é gente que tudo vê, com tudo se preocupa, gente que sente que o olho é a janela da alma, como dizia o poeta.
Olho Vivo! Não, leitor! Não era olho gordo. O adjetivo era Vivo!!!
E lá estava o projeto: “instalação de câmeras de vídeo para coibir a ação de marginais e baixar os índices de violência na cidade.”
Não deu outra!!!
Lembrei-me do nosso personagem do sinal, tão vivo em minha memória e tão real aos nossos olhos.
É ali que se deve Olho Vivo.
Não naquele sinal ou naquela avenida, e sim, naquele menino e na educação de qualidade que lhe falta. Pois ela- a Educação de Qualidade- ela sim forma de cidadãos conscientes e é a base para a dignidade dos mesmos, e sem dúvidas, é a melhor forma de coibir a violência.
Em vez de privar os cidadãos que andam por esses ares, por que não investir na sua verdadeira liberdade, torná-los ávidos à prática democrática com justiça, no lugar das ilusões, das utopias e de tanta hipocrisia?
Terminada aquela curiosa e conflitante leitura, amigo leitor, não pude fugir da verdade:
Eu estava prestes a subir as escadas, entrar em casa e abraçar saudosamente meu filho. Sendo assim, precipitei-me em encontrar a lixeira mais próxima e livrar-me de tudo o que li, pois eu sabia que o abraço que me aguardava era tão puro e que, ainda como aquele menino do sinal, nada sabe sobre democracia.
Porém, eu não perdi a esperança de que, um dia, meu filho possa viver a experiência, certamente maravilhosa, do verdadeiro valor Democrático.
Valéria Ferreira Duarte Guedes – 05/08/2006